terça-feira, 24 de agosto de 2010

Artigo - Inconstitucionalidade progressiva - Fernanda Mascaro

Inconstitucionalidade Progressiva

Fonte: Advocacia Mascaro

Publicado com autorização a Autora: Fernanda Mascaro


A Teoria da Inconstitucionalidade Progressiva foi construída com base na polêmica  em torno de disposições legais anteriores à Constituição Federal de 1988, veementemente quanto aos questionamentos sobre a recepção de artigos pela constituição. Nesta diapasão está a discussão acerca do artigo 68 do Código de Processo Penal, sendo frequentemente questionada a sua constitucionalidade, após a vigência da CF/88, vacilando muito, tanto na doutrina, quanto na jurisprudência. Muitos autores entendem que aquele artigo foi recepcionado pela Constituição de 1988[1], alegando que o Ministério Público estaria, assim, defendendo interesses sociais.
Art. 68. Quando o titular do direito à reparação do dano for pobre (art. 32, §§ 1º e 2º), a execução da sentença condenatória (art . 63) ou a ação civil (art. 64) será promovida, a seu requerimento, pelo Ministério Público.
Posicionamento divergente considera que o referido artigo foi revogado com a promulgação da Constituição Federal, criando as Defensorias Públicas, com o artigo 134 e, também, do “Estatuto da Advocacia” (Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994), afirmando que de tal forma, o Ministério Público estaria usurpando funções típicas da Defensoria Pública[2].
Art. 134. A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV.
Ocorre que, para dar uma resposta a cerca deste tema deve-se fazer uma análise profunda de vários dispositivos legais em conjunto, de forma harmônica, dentre eles: arts. 127, 129, 134 e 194 da CF/88; arts. 81 e 82 do CPC; arts. 63 e 64 do CPP.
Houve manifestação do Supremo Tribunal Federal, através de decisões, na conformidade de votos do Ministro Sepúlveda Pertence:
MINISTÉRIO PÚBLICO: LEGITIMAÇÃO PARA PROMOÇÃO, NO JUÍZO CÍVEL, DO RESSARCIMENTO DO DANO RESULTANTE DE CRIME, POBRE O TITULAR DO DIREITO À REPARAÇÃO: C. PR. PEN., ART. 68, AINDA CONSTITUCIONAL (CF. RE 135.328): PROCESSO DE INCONSTITUCIONALIZAÇÃO DAS LEIS.
1. A alternativa radical da jurisdição constitucional ortodoxa entre a constitucionalidade plena e a declaração de inconstitucionalidade ou revogação por inconstitucionalidade da lei com fulminante eficácia ex tunc faz abstração da evidência de que a implementação de uma nova ordem constitucional não é um fato instantâneo, mas um processo, no qual a possibilidade de realização da norma da Constituição - ainda quando teoricamente não se cuide de preceito de eficácia limitada - subordina-se muitas vezes a alterações da realidade fáctica que a viabilizem.
2. No contexto da Constituição de 1988, a atribuição anteriormente dada ao Ministério Público pelo art. 68 C. Pr. Penal - constituindo modalidade de assistência judiciária - deve reputar-se transferida para a Defensoria Pública: essa, porém, para esse fim, só se pode considerar existente, onde e quando organizada, de direito e de fato, nos moldes do art. 134 da própria Constituição e da lei complementar por ela ordenada: até que - na União ou em cada Estado considerado -, se implemente essa condição de viabilização da cogitada transferência constitucional de atribuições, o art. 68 C. Pr. Pen. será considerado ainda vigente: é o caso do Estado de São Paulo, como decidiu o plenário no RE 135.328" (STF, RE nº 147.776/SP, 1ª T., Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. de 19.05.1998).
E também houve decisões do Ministro Marco Aurélio: STF, RE nº 135.328/SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, j. de 29.06.1994. E, ainda, ADIn. 558 de 16.08.1991; TJDF, Acórdão nº 110.359, 2ª Turma Cível, Rel. Des. Adelith de Carvalho Lopes, j. de 19.10.1998; TAPR, Ap. nº 123081500, 1ª Câmara Cível, Juiz Conv. Antônio Renato Strapasson, j. de 10.08.1999 - AC.: 11432 e REsp nº 68.275/MG.
No voto do eminente Ministro Sepúlveda Pertence supra citado, pode visualizar a conclusão a qual chegou de forma brilhante para retirar as dúvidas a cerca do referido tema, considerando que essa atribuição deva ser efetivamente se reputar transferida do Ministério Público para a Defensoria Pública para essa finalidade, só podendo considerar existente, aonde estiver este órgão implantado e organizado de direito e de fato, até que a União ou em cada Estado implemente as condições de viabilização dessa transferência constitucional de atribuições imposta pelo artigo 134 da C.F. e da lei complementar por ela ordenada. Enquanto isto não ocorre, o artigo 68 do CPP será considerado ainda vigente, onde notoriamente, onde não existe Defensoria Pública, persiste até mesmo assistência judiciária como tarefa atípica de Procuradores do Estado.
Tal exemplo deste artigo demonstra claramente o que a doutrina vem chamando de inconstitucionalidade progressiva do artigo 68 do CPP:
"DIREITO PROCESSUAL. CONSTITUCIONAL. MINISTÉRIO PÚBLICO. AÇÃO CIVIL EX DELICTO. LEGITIMIDADE. CPP, ART. 68. INCONSTITUCIONALIDADE PROGRESSIVA DECLARADA PELO STF. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA.
1. Apesar da Constituição Federal de 1988 ter afastado, dentre as atribuições funcionais do Ministério Público, a defesa dos hipossuficientes, incumbindo-a às Defensorias Públicas (art. 134), o Supremo Tribunal Federal consignou pela inconstitucionalidade progressiva do CPP, art. 68, concluindo que 'enquanto não criada por lei, organizada - e, portanto, preenchidos os cargos próprios, na unidade da Federação - a Defensoria Pública, permanece em vigor o artigo 68 do Código de Processo Penal, estando o Ministério Público legitimado para a ação de ressarcimento nele prevista' (RE nº 135.328-7/SP, rel. Min. Marco Aurélio, DJ 01.08.94).
2. Precedentes do STF e do STJ.
3. Embargos rejeitados" (STJ, EREsp nº 232.279/SP, Corte Especial, Rel. Min. Edson Vidigal, j. de 01.07.2003). No mesmo sentido, v. STJ, REsp nº 475.010/SP.
A adoção de uma posição intermediária entre estado de plena constitucionalidade ou de absoluta inconstitucionalidade, se mostra compatível com a natureza ainda constitucional dessa regra processual penal, a fim de poder abarcar as transformações supervenientes do estado de fato, já que a implementação de uma nova ordem constitucional não é um fato instantâneo, mas um processo que depende de alterações na realidade fática que a viabilizem, que também pode ser vislumbrada no RE 341.717-SP pelo Relator Ministro Celso de Mello:
EMENTA: MINISTÉRIO PÚBLICO. AÇÃO CIVIL EX DELICTO. CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, ART. 68. NORMA AINDA CONSTITUCIONAL. ESTÁGIO INTERMEDIÁRIO, DE CARÁTER TRANSITÓRIO, ENTRE A SITUAÇÃO DE CONSTITUCIONALIDADE E O ESTADO DE INCONSTITUCIONALIDADE. A QUESTÃO DAS SITUAÇÕES CONSTITUCIONAIS IMPERFEITAS. SUBSISTÊNCIA, NO ESTADO DE SÃO PAULO, DO ART. 68 DO CPP, ATÉ QUE SEJA INSTITUÍDA E REGULARMENTE ORGANIZADA A DEFENSORIA PÚBLICA LOCAL. PRECEDENTES.
DECISÃO: A controvérsia constitucional objeto deste recurso extraordinário já foi dirimida pelo Supremo Tribunal Federal, cujo Plenário, ao julgar o RE 135.328-SP, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, fixou entendimento no sentido de que, enquanto o Estado de São Paulo não instituir e organizar a Defensoria Pública local, tal como previsto na Constituição da República (art. 134), subsistirá, íntegra, na condição de norma ainda constitucional - que configura um transitório estágio intermediário, situado "entre os estados de plena constitucionalidade ou de absoluta inconstitucionalidade" (GILMAR FERREIRA MENDES, "Controle de Constitucionalidade", p. 21, 1990, Saraiva) -, a regra inscrita no art. 68 do CPP, mesmo que sujeita, em face de modificações supervenientes das circunstâncias de fato, a um processo de progressiva inconstitucionalização, como registra, em lúcida abordagem do tema, a lição de ROGÉRIO FELIPETO ("Reparação do Dano Causado por Crime", p. 58, item n. 4.2.1, 2001, Del Rey).
É que a omissão estatal, no adimplemento de imposições ditadas pela Constituição - à semelhança do que se verifica nas hipóteses em que o legislador comum se abstém, como no caso, de adotar medidas concretizadoras das normas de estruturação orgânica previstas no estatuto fundamental - culmina por fazer instaurar "situações constitucionais imperfeitas" (LENIO LUIZ STRECK, "Jurisdição Constitucional e Hermenêutica", p. 468-469, item n. 11.4.1.3.2, 2002, Livraria do Advogado Editora), cuja ocorrência justifica "um tratamento diferenciado, não necessariamente reconduzível ao regime da nulidade absoluta" (J. J. GOMES CANOTILHO, "Direito Constitucional", p. 1.022, item n. 3, 5ª ed., 1991, Almedina, Coimbra - grifei), em ordem a obstar o imediato reconhecimento do estado de inconstitucionalidade no qual eventualmente incida o Poder Público, por efeito de violação negativa do texto da Carta Política (RTJ 162/877, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno).
Portanto, a precariedade operacional na implantação do mandamento do artigo 134 da Constituição Federal, que se espera que seja transitória, justifica o entendimento do Supremor Tribunal Federal, interpretando o texto constitucional e acolhendo a tese da inconstitucionalidade progressiva, de subsistir a legitimidade do Ministério Público onde ainda não instituída a Defensoria Pública para propor a ação civil ex delicto, entendimento compartilhado conforme pronunciamento de "Assistência Judiciária Gratuita", RT 797/733-4.


[1] Nesse sentido, FERNANDO TOURINHO FILHO, ADA PELLEGRINI e ROGÉRIO FELIPETO.
[2] Nesse sentido, RUI STOCO e ARAKEN DE ASSIS

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