terça-feira, 23 de março de 2010

AUDIÊNCIA PÚBLICA SOBRE POLÍTICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA E RESERVA DE VAGAS NO ENSINO SUPERIOR

AUDIÊNCIA PÚBLICA SOBRE POLÍTICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA E RESERVA DE VAGAS NO ENSINO SUPERIOR

Intervenção do Professor Kabengele Munanga
Representando o Centro de Estudos Africanos da Universidade de São Paulo
04 de março de 2010 – às 9h45min
"Em primeiro lugar, gostaria de agradecer ao Excelentíssimo Senhor Ministro Enrique Ricardo Lewandowski por me ter habilitado para representar nesta Audiência Pública, o Centro de Estudos Africanos da Universidade de São Paulo.
Bem, eu ingressei no Programa de Pós-Graduação em ciências sociais da Universidade de São Paulo em 1975. Fui o primeiro negro a concluir o doutorado em antropologia social nessa universidade em 1977. Por mera coincidência, esse primeiro negro era oriundo do continente africano e não do próprio Brasil. Três anos depois, ingressei na carreira docente na mesma instituição, no atual Departamento de Antropologia onde fui o primeiro e o único negro professor, desde sua fundação. Daqui a três anos, estarei compulsoriamente me aposentando, sem ainda vislumbrar a possibilidade do segundo docente negro nesse Departamento.
Creio que esta é a história dos brasileiros afrodescendentes, não apenas nas universidades, mas também em outros setores da vida nacional que exigem formação superior para ocupar cargos e postos de comando e responsabilidade. Geralmente são ausentes ou invisíveis nesses postos e cargos. Quando se tem um, é sempre o primeiro e o único raramente o segundo e o terceiro. Encontrar três ou quatro juntos numa mesma instituição já é motivo de festa! Esse quadro é considerado como gritante quando comparado ao dos outros países que convivem ou conviveram com as práticas racistas como os Estados Unidos e a África do Sul. Os dados ao nosso conhecimento mostram que na véspera do fim do regime do apartheid, a África do Sul tinha mais negros com diploma superior que o Brasil de hoje, incluindo o líder da luta antiapartheid, Nelson Mandela. Só este exemplo basta para mostrar que algo está errado no país da “democracia racial” que precisa ser corrigido.
Daí o sentido e a razão de ser das políticas de ação afirmativa ou de reservas de vagas nas universidades públicas nacionais cujo processo se desencadeou principalmente após a Terceira Conferência Mundial contra o Racismo realizada na África do Sul, em 2001.
Nos últimos oito anos, a começar pelas universidades estaduais do Rio de Janeiro (UERJ) e do Norte Fluminense (UENF) onde a política de cota foi implementada por meio de uma lei aprovada em 2001 na Assembléia Estadual do Rio de Janeiro, dezenas de universidades públicas federais e estaduais adotaram o sistema de cotas a partir da decisão de seus órgãos internos e conselhos universitários. Contrariando todas as previsões escatológicas daqueles que pensam que essa política provocaria um racismo ao contrário, conseqüentemente uma guerra racial devido à racialização de todos os aspectos da vida nacional, a experiência brasileira destes últimos anos mostra totalmente o contrário. Não houve distúrbios e linchamentos raciais em nenhum lugar como não apareceu nenhum movimento Ku Klux Klan à brasileira, prova de que as mudanças em processo estão sendo bem digeridas e compreendidas pelo povo brasileiro. Mais do que isso, as avaliações feitas até o momento comprovam que apenas nesses últimos oito anos da experiência das políticas de ação afirmativa, houve um índice de ingresso e de diplomados negros e indígenas no ensino superior jamais alcançado em todo o século passado.
O que se busca pela política de cotas para negros e indígenas, não é para ter direito às migalhas, mas sim para ter acesso ao topo em todos os setores de responsabilidade e de comando na vida nacional onde esses dois segmentos não são devidamente representados como manda a verdadeira democracia. A educação e formação profissional, técnica, universitária e intelectual de boa qualidade oferece a chave e a garantia da competitividade entre todos os brasileiros. Neste sentido, a política de cotas busca a inclusão daqueles brasileiros que por razões históricas e estruturais que têm a ver com nosso racismo à brasileira, encontram barreiras que a educação e formação superior podem em parte remover. Infelizmente, alguns invertem a lógica da proposta e veem na política de cotas a possibilidade de uma fratura da sociedade. Outros confessam que têm medo, mas medo de quê? De errar ou de acertar? Uma sociedade que quer mudar não deve ter medo de conflitos, pois não há mudança possível sem erros e sem conflitos, penso eu.
As tragédias de Ruanda devidas aos conflitos etnicopolíticos nada têm a ver com a implantação das políticas de ação afirmativa nas universidades brasileiras. É fabulação a insinuação de que o Brasil se tornaria um segundo Ruanda. Os conflitos no Ruanda, no Burundi e na atual República Democrática do Congo são consequências da política colonial belga que historicamente criou oposição entre etnias no espírito de dividir para dominar. Portanto, a relação entre Ruanda e o Brasil aludindo às políticas de ação afirmativa em benefício de afrodescendentes e indígenas é um álibi ideologicamente forçado para se opor às mudanças institucionais em matéria de recrutamento dos alunos.

Alguns obstáculos propositalmente colocados sobre as chances de sucesso das políticas de cotas se fizeram entender desde o início do processo em 2002. Felizmente, foram, no decorrer do tempo e do processo, removidos um a um pela própria prática e experiência das cotas nas universidades que as adotaram. Dizia-se no início que era difícil definir quem é negro ou afrodescendente por causa da intensa miscigenação ocorrida no país desde o seu descobrimento. Falsa dificuldade, porque a própria existência da discriminação racial antinegro é prova de que não é impossível identificá-lo. Existem evidentemente casos limites que mereceriam uma atenção desdobrada para não se cometer erros, casos esses que dependem da auto identificação dos candidatos. A bem de verdade, não houve dúvidas sobre a identidade da maioria dos estudantes brasileiros que ingressaram na universidade através das cotas. Diz-se também, que essa política é importada, em vez de ser uma solução nacional, baseada na realidade brasileira. Ora, sabemos todos que na história da humanidade nenhum povo inventa a totalidade de suas soluções. Nesse sentido, parte importante de nossos modelos, seja no campo do pensamento, ciência, tecnologia, político, jurídico, etc., foi inspirada em ou importada de outros países onde obtiveram sucesso. A questão fundamental é saber reinterpretá-las e adaptá-las a nossas realidades antes de nos apropriarmos delas. Penso que não devemos sucumbir-nos ao sofismo diante de uma desigualdade racial tão gritante em matéria de educação entre brasileiros.
Dizia-se também que a política das cotas violaria o princípio do mérito segundo o qual na luta pela vida os melhores devem ganhar. Pois bem, os melhores são aqueles que possuem armas mais eficazes, que em nosso caso seriam alunos oriundos dos colégios particulares melhor abastecidos. Os outros, que socialmente não nasceram com essas possibilidades, que se conformem! Finalmente, alegou-se que a política das cotas iria prejudicar o princípio de excelência muito caro para as grandes universidades. Mas, felizmente, também as avaliações feitas sobre o desempenho dos alunos cotistas na maioria das universidades que aderiram ao sistema, não comprovou a catástrofe. Surpreendentemente, os resultados do rendimento acadêmico desses alunos foram iguais e até mesmo superiores. Nem tampouco baixou o nível de excelência dessas universidades.
Sobrou apenas uma acusação, que explica nossa presença nesta Magna Casa: a inconstitucionalidade da política de ação afirmativa para indígenas e afrodescendentes. Pois bem! Seria descabível e até mesmo um contrasenso da minha parte, pela minha formação como antropólogo, ter a ousadia e o atrevimento para defender a constitucionalidade da política das cotas numa casa composta pelos especialistas da Lei e das leis e diante de juristas altamente qualificados e conceituados para defender a constitucionalidade ou acusar a inconstitucionalidade das cotas com competência e propriedade. Como não me considero um franco atirador, prefiro ser aluno e repetir fielmente o que alguns juristas, inclusive nesta Casa, já disseram a respeito.
Escreve Sidney Madruga, Procurador da República, em seu livro “Discriminação Positiva: Ações Afirmativas na Realidade Brasileira”:

A distinção entre o princípio da isonomia formal e substancial ou material, sobressai ante o tema das ações afirmativas, as quais, como destaca Mônica de melo, buscam revigorar o princípio da igualdade a partir de sua ótica material, da efetiva igualdade entre todos (...) [p.32] A igualdade formal seria a igualdade perante a lei. Ante a lei todos somos iguais sem distinção [op.cit.]. A igualdade substancial, portanto, é a busca da igualdade de fato, da efetivação, da concretização dos postulados da igualdade perante a lei (igualdade formal) (...) [p.41] – Ainda assim, não se pode falar em desconexão, mas numa diferenciação entre a igualdade formal e substancial, p.42 A isonomia constitucional, registra Manoel Gonçalves Ferreira Filho, citado por Hédio Silva Jr, também abarca desigualações, a fim de promover o bem de todos. Vale dizer, o princípio da igualdade não proíbe de modo absoluto as diferenciações de tratamento, vedando apenas aquelas diferenciações arbitrárias. Vê-se, portanto, conforme atesta Maria Garcia, que a igualdade traz em seu bojo um conceito relativo e relacional. Relativo, pois não pode ser compreendido num sentido absoluto; isto é, a máxima “todos são iguais perante a lei” passa a ser entendida como a composição de duas afirmações distintas, a saber: o igual deve ser tratado igualmente e o desigual desigualmente, na medida exata de sua diferença (...) [p. 49-50].
Assim, igualdade tanto é não discriminar, como discriminar em busca de uma maior igualização (discriminar positivamente) [p.50].

Na interpretação de muitos, essa concretude de direitos passa pela implementação de ações afirmativas, que vão além das barreiras a condutas antidiscriminatórias, em desfavor de grupamentos humanos discriminados. Note-se, ainda, que a discriminação positiva não tem apenas o escopo de prevenir a discriminação, na medida em que, como possui duplo caráter, qual seja o reparatório (corrigir injustiças praticadas no passado) e o distributivo (melhor repartir, no presente, a igualdade de oportunidades) direcionados, principalmente para áreas da educação, da saúde e do emprego. Os pronunciamentos de alguns ministros desta Casa são claríssimos e sem nenhuma ambigüidade sobre este assunto.
Para concluir, penso que existe um debate na sociedade que envolve pensamentos, filosofias, representações do mundo, ideologias e formações diferentes. Esse pluralismo é socialmente saudável, na medida em que pode contribuir para a conscientização de seus membros sobre seus problemas e auxiliar a quem de direito, na tomada de decisões esclarecidas. Este debate se resume a duas abordagens dualistas. A primeira compreende todos aqueles que se inscrevem na ótica essencialista, segundo a qual existe uma natureza comum a todos os seres humanos em virtude da qual todos têm os mesmos direitos, independentemente de suas diferenças de idade, sexo, raça, etnia, cultura, religião, etc. Trata-se de uma defesa clara do universalismo ou do humanismo abstrato, concebido como democrático. De fato, esse humanismo abstrato se opõe ao reconhecimento público das diferenças entre brancos e não brancos, entre homens e mulheres, jovens, crianças e adultos. As melhores políticas públicas, capazes de resolver as mazelas e as desigualdades da sociedade brasileira, deveriam ser somente macrossociais ou universalistas. Qualquer proposta de ação afirmativa vinda do Estado que introduza as diferenças para lutar contra as desigualdades, é considerada, nessa abordagem, como um reconhecimento oficial das raças e, conseqüentemente, como uma racialização do Brasil, cuja característica dominante fundante é a mestiçagem. Ou, em outras palavras, as políticas de reconhecimento das diferenças poderiam incentivar os conflitos raciais que, segundo postula, nunca existiram. Nesse sentido, a política de cotas é uma ameaça à mistura racial, ao ideal da paz consolidada pelo mito de democracia racial.
A segunda abordagem reúne todos aqueles que se inscrevem na postura nominalista ou construcionista, ou seja, os que se contrapõem ao humanismo abstrato e ao universalismo, rejeitando uma única visão do mundo em que não se integram as diferenças. Eles entendem o racismo como produção do imaginário destinado a funcionar como uma realidade a partir de uma dupla visão do outro diferente, isto é, do seu corpo mistificado e de sua cultura também mistificada. O outro existe primeiramente por seu corpo antes de se tornar uma realidade social. Neste sentido, se a raça não existe biologicamente, histórica e socialmente ela é dada, pois no passado e no presente ela produz e produziu vítimas. Apesar do racismo não ter mais fundamento científico, tal como no século XIX, e não se amparar hoje em nenhuma legitimidade racional, essa realidade social da raça que continua a passar pelos corpos das pessoas não pode ser ignorada.
Grosso modo, eis as duas abordagens essenciais que nos dividem: intelectuais, estudiosos, midiáticos, ativistas e políticos, não apenas no Brasil, mas no mundo todo. Ambas produzem lógicas e argumentos inteligíveis e coerentes, numa visão que eu considero maniqueísta. A melhor abordagem, do meu ponto de vista, seria aquela que combina a aceitação da identidade humana genérica com a aceitação da identidade da diferença. Para ser um cidadão do mundo, é preciso ser, antes de mais nada, um cidadão de algum lugar, observou Milton Santos num de seus textos. A cegueira para com a cor é uma estratégia falha para se lidar com a luta antirracista, pois não permite a autodefinição dos oprimidos e institui os valores do grupo dominante e, conseqüentemente, ignora a realidade da discriminação cotidiana. A estratégia que obriga a tornar as diferenças salientes em todas as circunstâncias obriga a negar as semelhanças e impõe expectativas restringentes. No entanto, a discussão fica empobrecida quando se busca um posicionamento para saber se “essa desigualdade na igualdade” é bom ou ruim, pois a sociedade não funciona de maneira binária (ou isso ou aquilo) própria dos desajustados maniqueístas, mas sim na permanente tensão entre diferentes forças Visto deste ângulo, não creio que haja lei capaz de suprimir a mestiçagem ou de instituir a raça na sociedade brasileira, até porque não e isso que a lei busca. As ações afirmativas nos Estados Unidos e na Índia não foram para criar raças ou castas que já existiam antes naquelas sociedades. As leis que proibiram os intercursos sexuais entre brancos e negros nos Estados Unidos e na África do Sul em busca da pureza racial, não tiveram o êxito que delas se esperavam. A constituição da Índia de 1950 aboliu o sistema de castas naquele país, embora, passados 60 anos, ele continue a vigorar na prática, prova de que as leis sozinhas não resolvem todos os problemas de uma sociedade. As políticas de ação afirmativa foram implementadas nesses países para corrigir os efeitos negativos acumulados e presentes causados pelas discriminações e sobretudo pelo racismo institucional. Creio que isso é também a lógica dessa política no Brasil que defendemos.
Se a questão fundamental é como combinar a semelhança com a diferença para podermos viver harmoniosamente, sendo iguais e diferentes, por que não podemos também combinar as políticas universalistas com as políticas diferencialistas? Diante do abismo em matéria de educação superior, entre brancos e negros, brancos e índios, e levando-se em conta outros indicadores sócio-econômicos provenientes dos estudos estatísticos do IBGE e do IPEA, os demais índices do desenvolvimento humano provenientes dos estudos do PNUD, as políticas de ação afirmativa se impõem com urgência, sem que se abra mão das políticas macrossociais.
Não conheço nenhum defensor das cotas que se oponha à melhoria do ensino público. Pelo contrário, os que criticam as cotas e as políticas diferencialistas se opõem categoricamente a qualquer política de diferenciação por considerá-las a favor da racialização do Brasil. As leis para a regularização dos territórios e das terras das comunidades quilombolas, de acordo com o artigo 68 da Constituição, as leis 10639/03 e 11645/08 que tornam obrigatório o ensino da história da África, do negro no Brasil e dos povos indígenas; as políticas de saúde para doenças específicas da população negra como a anemia falciforme, etc., tudo isso é considerado como racialização do Brasil, e virou motivo de piada. Para alguns, a defesa da melhoria da escola pública é apenas um bom álibi para criticar as políticas focadas de ação afirmativa.
Creio, Senhor Ministro, que uma política que integre os cidadãos brasileiros, que por motivos históricos e estruturais vinculados à ideologia racista, não deveria ser considerada anticonstitucional, ou como uma política que divide a sociedade brasileira. Mas como não há unanimidade em matéria de interpretação das leis e da Carta magna da nação brasileira resta, para nós, as pessoas comuns, apenas a esperança de que os que de direito possam nos oferecer a sentença que desejamos.
Muito lhe agradeço, Senhor Ministro, pela oportunidade de defender, sem medo de errar, os interesses de um segmento importante da sociedade brasileira, que são também os interesses do Brasil."
Intervenção do Professor Kabengele Munanga
Representando o Centro de Estudos Africanos da Universidade de São Paulo
04 de março de 2010 – às 9h45min

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